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Proto-editorial
Na tentativa de descrever o que podem ser tecnologias oníricas — o tema que norteia o próximo número da revista Leonorana, em 2022/23 — imaginamos um vasto leque de possíveis abordagens que, embora se venham a enquadrar no espaço bi-dimensional da publicação, exigem um espaço de experimentação distinto, que envolva inter-acções humanas e outras-que-humanas. Entendemos, portanto, que este número da revista será expandido a múltiplas formas de expressão e de criação, para lá da página impressa, em momentos expositivos e eventos participativos. Definimos, desde logo, estas tecnologias como os métodos, exercícios, ferramentas, dispositivos ou receitas que possam induzir uma experiência física transformadora, entre o consciente e o inconsciente, porque ampliadora da realidade da vigília.
Nós, editores, como investigadores, artistas e curadores — partilhando, desde longa data, o interesse por estados liminares da nossa existência e como estes podem ser tratados no campo artístico — procuramos quais as tecnologias que melhor nos oferecem uma experiência corpórea reveladora, altamente sensorial, ao providenciar estímulos de carácter visual, táctil, sonoro, olfactivo, entre outros. O fim que reclamamos para estas tecnologias (desde as de mais baixo impacto, arcaicas e tradicionais, até tecnologias de ponta, de alto impacto material) é o seu papel catalisador em co-habitações imensamente mais amplas, entre indivíduos humanos com todo o existente (orgânico, inorgânico, visível e invisível, processual, energético ou metabólico).
As tecnologias que pretendemos trazer para este projecto abarcam desde a dreamachinede Bryon Gysin e William Burroughs, ou a bíblica escada de jacob, entre outros métodos e ferramentas de expansão dos estados de consciência; agrupando o que serão tecnologias subtis, de provocação de efeitos no limite entre os estados de vigília e de sono. A criação cultural e artística actual, ainda que plenamente integrada numa realidade profundamente determinada por máquinas de tecnologias avançadas, é um campo crucial para imaginar e conceber importantes alternativas à exploração massiva dos corpos e subjectividades nas sociedades contemporâneas.
Na continuação do que tem vindo a ser o processo da revista Leonorana, num primeiro momento de conceptualização editorial, desenvolveremos uma investigação definida pelas seguintes etapas: a) — indagação cultural pela qual se espera encontrar dispositivos e metodologias de alta ou baixa tecnologia, utilizados por diferentes culturas que permitam demonstrar a atribuição de uma variedade muito grande de enquadramentos, usos, valores sociais e comunitários humanos e (muito) além do humano; b) — indagação histórica dos dispositivos construídos, no contexto Ocidental, na indução de sonhos, antes e depois da psicanálise (e que destes fez matéria essencial para a construção do humano e dos problemas que lhe são inerentes), e o cruzamento com outras culturas; c) — a indagação no campo artístico contemporâneo que concretiza em métodos e objectos de elevado valor simbólico, tecnologias de ampliação do imaginário.
Posteriormente, faremos uma reflexão assente nas seguintes linhas gerais de orientação: a) — quem sonha e porque sonha (âmbito não restrito ao humano); b) — definição do tipo de tecnologias auxiliares; b) — objectivos e alcance destas tecnologias; c) — construção e apresentação de propostas, visões.
Para já, pensamos em referências que nos são próximas e que nos vão ajudar a delimitar o nosso campo de trabalho. Definimos duas direcções que nos interessam particularmente explorar que nomeamos de: I) Dispositivos linguísticos e ciclos onírico-imagéticos e II) Estimulação sensorial.
I) Dispositivos linguísticos e ciclos onírico-imagéticos
Um manual de instruções para a indução de estados de sonho, um diário com registos e um programa de distribuição desses registos entre amigos com vista à sua interpretação, terá servido a Ana Hatherly para desenvolver certos conteúdos em material literário. Hatherly terá assegurado os seus leitores que as narrativas que produziu a partir dos sonhos relacionavam-se mais com as práticas de comunidades indígenas colombianas do que com a psicanálise que a autora determinantemente rejeitava. No livro que publicou, Anacrusa 68 sonhos, pode-se ler uma explícita necessidade de fusão com o mundo animal e até com o monstruoso (ou híbrido) proporcionada pela noção de que, nesse estado de sonho, se sonha com outros sonhadores e com eles se entra em diálogo. Imaginamos, portanto, o desenvolvimento de projectos de criação que prossigam com o “relato” textual como um tipo de tecnologia simples (uma máquina literária ou «máquina mole» na acepção de William Burroughs), enquanto processo de materialização, comunicação, e indução de sonhos, e enquanto cartografia potencial destes (dream mapping). Estes materiais serão desdobrados, posteriormente, em versões de exposição e publicação. Na exposição: mediante leituras colectivas em ambientes especificamente criados para auxiliar à atenção e concentração em tais experiências intensificadas. Na publicação: enquanto partilha de métodos, exercícios, e manuais de indução, que possam conduzir leitores a uma experiência própria, e individualizada. Neste caso, a ênfase será dada ao texto não só na sua capacidade descritiva (de uma realidade mais ampla), mas também capaz de, na sua estrutura, criar um efeito de concentração que possibilite um estado semelhante ao hipnótico, como proporcionado pela repetição de mantras e ladainhas nas mais variadas formas de rituais de transe extático, presentes na leitura de textos sagrados ou em múltiplas práticas orais, musicais e outras.
II) Estimulação sensorial.
Como nas iniciações rituais praticadas pelas mais variadas comunidades indígenas, é largamente conhecido o poder da sugestão sobre os estados de sonho. Onde estamos, com quem, rodeados do quê; o que ingerimos, cheiramos, vemos, ouvimos e sentimos, influencia enormemente o trajecto e os encontros sonhados, assim como a qualidade, nitidez e rememoração do sonho (ou de estados alterados de consciência), após o acordar.
Procuraremos aliar e experimentar várias destas técnicas históricas (que descrevemos como dream machines) que vão desde estímulos visuais estroboscópicos (como a já citada Dreamachine de Gysin e Burroughs), à imersão em ambientes sonoros de elevada intensidade e lenta modulação melódica (como a Dream House do compositor La Monte Young e da artista Marian Zazeela), entre outros métodos hipnóticos, para conjurar experiências colectivas de expansão da consciência.
Nesse mesmo sentido, certos momentos de encontro e apresentação terão lugar durante períodos nocturnos, tirando partido da natural propensão dos corpos para o sono e para a libertação das convenções normativas diurnas, ligadas às actividades ditas produtivas. A atenção aos estados de semi-consciência, e à secreção de substâncias químico-receptoras como a melatonina, será posta em evidência em projectos de sestas colectivas em ambientes proporcionados para o efeito — práticas somáticas de cuidado físico e sensorial, como as que têm sido desenvolvidas profundamente pela artista Myriam Lefkowitz.
Todos estes são exemplos de aparatos rítmicos, onde a exposição continuada a certos padrões de frequência ou impulsos, agem, modulam ou transformam, por via externa, ciclos e padrões internos (pulsação cardíaca, respiração, frequências cerebrais), levando a “afinarmo-nos”, “sintonizarmo-nos” ou “sincronizarmo-nos” por simpatia com esses outros corpos/sujeitos/objetos/fluxos, quando estamos na sua presença.
Na tentativa de descrever o que podem ser tecnologias oníricas — o tema que norteia o próximo número da revista Leonorana, em 2022/23 — imaginamos um vasto leque de possíveis abordagens que, embora se venham a enquadrar no espaço bi-dimensional da publicação, exigem um espaço de experimentação distinto, que envolva inter-acções humanas e outras-que-humanas. Entendemos, portanto, que este número da revista será expandido a múltiplas formas de expressão e de criação, para lá da página impressa, em momentos expositivos e eventos participativos. Definimos, desde logo, estas tecnologias como os métodos, exercícios, ferramentas, dispositivos ou receitas que possam induzir uma experiência física transformadora, entre o consciente e o inconsciente, porque ampliadora da realidade da vigília.
Nós, editores, como investigadores, artistas e curadores — partilhando, desde longa data, o interesse por estados liminares da nossa existência e como estes podem ser tratados no campo artístico — procuramos quais as tecnologias que melhor nos oferecem uma experiência corpórea reveladora, altamente sensorial, ao providenciar estímulos de carácter visual, táctil, sonoro, olfactivo, entre outros. O fim que reclamamos para estas tecnologias (desde as de mais baixo impacto, arcaicas e tradicionais, até tecnologias de ponta, de alto impacto material) é o seu papel catalisador em co-habitações imensamente mais amplas, entre indivíduos humanos com todo o existente (orgânico, inorgânico, visível e invisível, processual, energético ou metabólico).
As tecnologias que pretendemos trazer para este projecto abarcam desde a dreamachinede Bryon Gysin e William Burroughs, ou a bíblica escada de jacob, entre outros métodos e ferramentas de expansão dos estados de consciência; agrupando o que serão tecnologias subtis, de provocação de efeitos no limite entre os estados de vigília e de sono. A criação cultural e artística actual, ainda que plenamente integrada numa realidade profundamente determinada por máquinas de tecnologias avançadas, é um campo crucial para imaginar e conceber importantes alternativas à exploração massiva dos corpos e subjectividades nas sociedades contemporâneas.
Na continuação do que tem vindo a ser o processo da revista Leonorana, num primeiro momento de conceptualização editorial, desenvolveremos uma investigação definida pelas seguintes etapas: a) — indagação cultural pela qual se espera encontrar dispositivos e metodologias de alta ou baixa tecnologia, utilizados por diferentes culturas que permitam demonstrar a atribuição de uma variedade muito grande de enquadramentos, usos, valores sociais e comunitários humanos e (muito) além do humano; b) — indagação histórica dos dispositivos construídos, no contexto Ocidental, na indução de sonhos, antes e depois da psicanálise (e que destes fez matéria essencial para a construção do humano e dos problemas que lhe são inerentes), e o cruzamento com outras culturas; c) — a indagação no campo artístico contemporâneo que concretiza em métodos e objectos de elevado valor simbólico, tecnologias de ampliação do imaginário.
Posteriormente, faremos uma reflexão assente nas seguintes linhas gerais de orientação: a) — quem sonha e porque sonha (âmbito não restrito ao humano); b) — definição do tipo de tecnologias auxiliares; b) — objectivos e alcance destas tecnologias; c) — construção e apresentação de propostas, visões.
Para já, pensamos em referências que nos são próximas e que nos vão ajudar a delimitar o nosso campo de trabalho. Definimos duas direcções que nos interessam particularmente explorar que nomeamos de: I) Dispositivos linguísticos e ciclos onírico-imagéticos e II) Estimulação sensorial.
I) Dispositivos linguísticos e ciclos onírico-imagéticos
Um manual de instruções para a indução de estados de sonho, um diário com registos e um programa de distribuição desses registos entre amigos com vista à sua interpretação, terá servido a Ana Hatherly para desenvolver certos conteúdos em material literário. Hatherly terá assegurado os seus leitores que as narrativas que produziu a partir dos sonhos relacionavam-se mais com as práticas de comunidades indígenas colombianas do que com a psicanálise que a autora determinantemente rejeitava. No livro que publicou, Anacrusa 68 sonhos, pode-se ler uma explícita necessidade de fusão com o mundo animal e até com o monstruoso (ou híbrido) proporcionada pela noção de que, nesse estado de sonho, se sonha com outros sonhadores e com eles se entra em diálogo. Imaginamos, portanto, o desenvolvimento de projectos de criação que prossigam com o “relato” textual como um tipo de tecnologia simples (uma máquina literária ou «máquina mole» na acepção de William Burroughs), enquanto processo de materialização, comunicação, e indução de sonhos, e enquanto cartografia potencial destes (dream mapping). Estes materiais serão desdobrados, posteriormente, em versões de exposição e publicação. Na exposição: mediante leituras colectivas em ambientes especificamente criados para auxiliar à atenção e concentração em tais experiências intensificadas. Na publicação: enquanto partilha de métodos, exercícios, e manuais de indução, que possam conduzir leitores a uma experiência própria, e individualizada. Neste caso, a ênfase será dada ao texto não só na sua capacidade descritiva (de uma realidade mais ampla), mas também capaz de, na sua estrutura, criar um efeito de concentração que possibilite um estado semelhante ao hipnótico, como proporcionado pela repetição de mantras e ladainhas nas mais variadas formas de rituais de transe extático, presentes na leitura de textos sagrados ou em múltiplas práticas orais, musicais e outras.
II) Estimulação sensorial.
Como nas iniciações rituais praticadas pelas mais variadas comunidades indígenas, é largamente conhecido o poder da sugestão sobre os estados de sonho. Onde estamos, com quem, rodeados do quê; o que ingerimos, cheiramos, vemos, ouvimos e sentimos, influencia enormemente o trajecto e os encontros sonhados, assim como a qualidade, nitidez e rememoração do sonho (ou de estados alterados de consciência), após o acordar.
Procuraremos aliar e experimentar várias destas técnicas históricas (que descrevemos como dream machines) que vão desde estímulos visuais estroboscópicos (como a já citada Dreamachine de Gysin e Burroughs), à imersão em ambientes sonoros de elevada intensidade e lenta modulação melódica (como a Dream House do compositor La Monte Young e da artista Marian Zazeela), entre outros métodos hipnóticos, para conjurar experiências colectivas de expansão da consciência.
Nesse mesmo sentido, certos momentos de encontro e apresentação terão lugar durante períodos nocturnos, tirando partido da natural propensão dos corpos para o sono e para a libertação das convenções normativas diurnas, ligadas às actividades ditas produtivas. A atenção aos estados de semi-consciência, e à secreção de substâncias químico-receptoras como a melatonina, será posta em evidência em projectos de sestas colectivas em ambientes proporcionados para o efeito — práticas somáticas de cuidado físico e sensorial, como as que têm sido desenvolvidas profundamente pela artista Myriam Lefkowitz.
Todos estes são exemplos de aparatos rítmicos, onde a exposição continuada a certos padrões de frequência ou impulsos, agem, modulam ou transformam, por via externa, ciclos e padrões internos (pulsação cardíaca, respiração, frequências cerebrais), levando a “afinarmo-nos”, “sintonizarmo-nos” ou “sincronizarmo-nos” por simpatia com esses outros corpos/sujeitos/objetos/fluxos, quando estamos na sua presença.