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Leonorana 4.
2020

Projeto editorial: Isabel Carvalho.
Coedição: Catarina Rosendo.
Ensaios de Catarina Rosendo, Maria José Oliveira, Paula Pinto, Ana João Romana, Catarina Leitão e José Roseira, Isabel Carvalho, Liliana Coutinho, Ricardo Valentim, OWTC (Other ways to care) e Victor Beiramar Diniz.
Editorial project: Isabel Carvalho.
Co-edition: Catarina Rosendo.
Essays by Catarina Rosendo, Maria José Oliveira, Paula Pinto, Ana João Romana, Catarina Leitão e José Roseira, Isabel Carvalho, Liliana Coutinho, Ricardo Valentim, OWTC (Other ways to care) e Victor Beiramar Diniz.


EDITORIAL
O tema “cuidar” há muito que tinha sido pensado para este número da revista. O trabalho de edição já estava em curso quando foi anunciada a pandemia causada pelo surto do SARS-CoV-2. Foi uma coincidência que, embora tenha influenciado um pouco a temática de alguns dos ensaios, não mudou a estrutura inicial da revista. Alterou, porém, todo o processo. O trabalho de edição que defendemos precisa de ter em consideração as condições particulares de quem participa, mas o abanão que esta situação provocou de facto não poupou ninguém. Estendemos todos os prazos até ao limite possível para a recepção dos ensaios e, infelizmente, alguns tiveram mesmo que “cair”, sob pena de não podermos manter a prevista periodicidade anual da revista. Ainda assim, não poderíamos ter deixado de ter um especial cuidado com tudo e com todas/os as/os colaboradores no decurso da preparação da Leonorana#4, até porque, e como ideias gerais propostas para os ensaios, optámos por dar ênfase aos actos de cuidar enquanto formas de relacionar. Pôr em relação, trabalhar relações ou recuperar relações são questões inerentes aos gestos que permitem que algo ou alguém, pelas suas fragilidades e até prematuramente, não se perca ou desapareça; contribuem para salientar a importância de reconhecer a ligação entre todo o existente e de aí operar as pequenas diferenças cujo significado ético tem necessariamente uma dimensão política.
Este número da revista poderia não dar conta desta pandemia e não se deixar marcar por ela, não lhe fazendo qualquer menção. Mas não resultaria isso em algo forçado, dado que ela tem ocupado, nos últimos largos meses, um lugar central nos pensamentos e nas decisões de todos nós, em todo o mundo? Mais: não resultaria isso na nossa cumplicidade com os que advogam a ficção do problema ou no nosso acordo com os denominados “coronacépticos”, aparentemente cegos e surdos face às sérias explicações científicas para as causas e os efeitos do vírus, recusando as reais circunstâncias e as adaptações necessárias para evitar que o número de doentes e mortos suba exponencialmente?
Entre tantas possibilidades de entender e praticar cuidados, uma delas é pensar, reflectir e compreender criticamente, a partir de um panorama geral, a informação que abundantemente circula. A negação da actual situação compreende-se não a partir de uma crítica séria sobre a informação disponível, mas por intermédio de uma crítica preguiçosa e tendenciosa. A resistência em acompanhar a mudança (sim, o mundo virou-se ao avesso, mas o melhor é aceitá-lo), apenas contribui para destituir de importância o que entendemos por cuidados e até mesmo o facto de que estamos diante de novos tipos de cuidados para os quais nos devemos preparar. Neste sentido, ainda que procurando dar múltiplas perspectivas sobre o cuidar, reconhecemos este mo-mento como sendo de transição.
Os vários ensaios que integram este número da revista dedicam-se a pensar o cuidar a partir de múltiplas valências e desígnios e incidindo sobre pessoas, sobre obras de arte e instituições museológicas, sobre o visionamento colectivo de filmes, sobre o património edificado e os jardins, os espaços verdes, o ar que respiramos e as abelhas, aquelas sobre as quais se diz que, se forem levadas à extinção, também nós humanos nos extinguiremos enquanto espécie.
Catarina Rosendo narra, em “Fenomenologia da percepção de uma cuidadora”, a sua experiência como cuidadora de um doente terminal. O seu ensaio é desenvolvido a partir de um conjunto de notas pessoais que tem implícito a convicção de que uma maior visibilidade social dos trabalhos e funções desta natureza necessita do contributo, na primeira pessoa, de quem a eles se dedica. Os desenhos que o acompanham são da autoria da pessoa doente e foram realizados na altura em que precisou de cuidados. Na articulação entre texto e imagem, procurou-se a íntima interacção, colaboração e reciprocidade inerente aos actos de cuidar.
Maria José Oliveira e Paula Pinto desenvolvem, respectivamente em “Descascar uma maçã” e “Cuidar, arquivo de gestos”, reflexões sobre o ritual de descascar uma maçã realizado pela artista todas as manhãs. A nutrição como forma elementar de cuidado e a repetição de um gesto como convocação permanente do tempo que se reactualiza no seu fluir são aqui explorados a partir da transcrição, por parte de Maria José Oliveira, das notas extraídas das longas conversas diárias mantidas ao telefone com Paula Pinto, e da exploração dos vários sentidos contidos nesses gestos por parte da curadora, cuja atenção à ideia de cuidar, e de curadoria, é indissociável das noções de arquivo e memória.
Um propósito afim podemos encontrar no contributo de Ana João Romana que, em “Uma possível biografia: Tereza Malaquias”, dá pistas sobre esta figura enigmática, artista e hipotética autora de banda desenhada dos anos 1930–50. Os documentos e desenhos de Tereza Malaquias recentemente resgatados do lixo são o mote para o levantamento de questões ligadas ao protagonismo e visibilidade das mulheres no campo artístico do seu tempo e à falta de memória como um acto de negligência.
Em “O terceiro corpo”, José Roseira e Catarina Leitão articulam uma noção de alteridade e prolongamento de si que tem na apicultura uma poderosa metáfora. A partir dos trabalhos quotidianos exigidos por uma casa com jardim e criação de animais, a relação entre estes e os humanos é evidenciada como um ecossistema de relações em mútua dependência que constantemente activam gestos associados à criação, manutenção e transformação de todas as coisas, e são o lugar onde a natureza se torna cultura.
Isabel Carvalho, em “Amores-perfeitos”, descreve as suas dificuldades na aquisição do estatuto legal de cuidadora informal e usa o humor como estratégia para conferir existência à multi-plicidade de gestos implicados nos actos de cuidar. Combinado com alguns desenhos por si realizados e nos quais a sua cuidada colaborou, o seu ensaio atenta na dificuldade em comunicar a experiência de cuidar e em como esta requer ser traduzida e estreitada numa linguagem legalmente reconhecível.
Em “Do cuidado, ou as horas malgaxes”, Liliana Coutinho contrapõe duas perspectivas sobre o tempo (o tempo dividido em função da produtividade e o dividido em função dos cuidados), ao mesmo tempo que confronta diferentes noções culturais de cuidar: o cuidar como uma prática “naturalmente” integrada na vida quotidiana e o cuidar como uma abrupta exigência, fruto das necessidades impostas pela pandemia.
O envio regular de correspondência, um procedimento que é parte da habitual divulgação artística de eventos, integra também o trabalho artístico de Ricardo Valentim. O cuidado enquanto atenção ao estado de saúde de um amigo e enquanto prática curatorial combina-se neste postal, o qual inclui referências a uma obra de arte e a uma exposição que despoletam no artista um comentário, sob a forma de interjeição bem humorada, sobre a necessidade de “descolonizar” as instituições artísticas.
Em “Together/Apart: Mapping Filmmaking and Screening Practices for Mental Health Activism”, o grupo OWTC apresenta-se através da descrição da sua dinâmica enquanto grupo e de que modo os cuidados que promovem na área da saúde mental, especialmente em tempos de confinamento, adquirem novos significados e novas práticas por via da organização de visionamentos colectivos e inclusivos de cinema.
Finalmente, o desenho técnico de Victor Beiramar Diniz mostra uma parte da sua intervenção nos canteiros dos separadores centrais da Av. 24 de Julho, em Lisboa, e articula-se com algumas notas acerca do cuidar como uma domesticação cultural da natureza com vista à redução da sua força desestabilizadora e à sua fruição. O descuidado como uma operação intrínseca ao geral funcionamento da natureza é aqui explorado através da tentativa de retirar artifício às intervenções humanas sobre as matérias vegetais vivas.

EDITORIAL
The theme of “care” had long been considered for this issue of Leonorana. Editing work was already underway when the pandemic caused by the SARS-CoV-2 outbreak was announced. It was a coincidence that did not change the initial structure of the magazine, even though it influenced the themes developed in some of the essays. It did, however, change the whole process. The editing work we stand by needed to take into account the particular conditions of those who participated, but the shock that this situation has provoked spared no one. We extended all the deadlines for the reception of the essays to the maximum possible but, unfortunately, some had to “be left behind”, or we risked not being able to maintain the magazine’s expected annual frequency. Even so, we made sure we took special care with everything and with all the collaborators during the preparation of Leonorana#4, especially because we chose to emphasize acts of caring as ways of relating, as general ideas proposed for the essays. Relating, working on relationships or recovering relationships are issues inherent to gestures that allow something or someone, due to their fragilities, not to be lost or disappear; are issues that contribute to highlight the importance of recognizing the connection between everything that exists and of operating small differences whose ethical significance necessarily has a political dimension.
We could have chosen not to define this issue by the pandemic and even make no mention of it. But wouldn’t that seem forced, given that the pandemic has occupied, for the past few months, a central place in the thoughts and decisions of all of us, all over the world? Furthermore, would this mean we were being complicit with those who advocate the fiction of the problem or with the so-called “coronavirus sceptics”, apparently blind and deaf in the face of serious scientific explanations for the causes and effects of the virus, refusing the real circumstances and the necessary adaptations to prevent the number of sick and dead from rising exponentially?
Among the many possibilities that exist to understand and practice care, one of them is to think, reflect and critically comprehend, from a general perspective, the information that profusely circulates. The denial of the current situation can be understood not from a serious critique of the available information, but through lazy and biased criticism. The resistance to accompany change (yes, the world has been turned upside down, but it is best to accept it) only contributes to dismiss what we
mean by care and even the fact that we are facing new types of care for which we must prepare. In this sense, although seeking to provide multiple perspectives on care, we recognize this moment as a moment of transition.
The various essays that comprise this issue are dedicated to reflections on care based on multiple functions and purposes and focusing on people, on works of art and museological institutions, on the collective viewing of films, on architectural heritage and gardens, on green spaces, on the air we breathe and the bees (which, if led to extinction, it is said, humans will also become extinct as a species).
In “Fenomenologia da percepção de uma cuidadora”, Catarina Rosendo narrates her experience as a caregiver of a terminally ill patient. Her essay departs from a set of personal notes and implies the belief that a greater social visibility of works and functions of this nature requires the contribution, in the first person, of those who are dedicated to them. The accompanying drawings are made by the person who is sick and were made at the time he needed care. The intimate interaction and the collaboration and reciprocity inherent to the acts of caring were sought through the articulation between text and image.
In “Descascar uma maçã” and “Cuidar, arquivo de gestos”, Maria José Oliveira and Paula Pinto develop, respectively, reflections on the ritual of peeling an apple performed by the artist every morning. Nutrition as an elementary form of care and the repetition of a gesture as a permanent call for time that revises itself in its flow are examined by Maria José Oliveira from the transcription of the notes extracted from the long daily conversations held over the phone with Paula Pinto, and from the exploration of the various meanings contained in these gestures by the curator, whose attention to the idea of caring, and curation, is inseparable from the notions of archive and memory.
A similar purpose can be found in Ana João Romana’s contribution who, in “Uma possível biografia: Tereza Malaquias”, gives clues about this enigmatic figure, an artist and hypothetical comic book author from the 1930s-50s. The documents and drawings of Tereza Malaquias which were recently rescued from the trash are the motto for raising issues related to the protagonism and visibility of women in the artistic field of their time and the lack of memory as an act of negligence.
In “O terceiro corpo”, José Roseira and Catarina Leitão articulate a notion of otherness and self-extension that finds a powerful metaphor in beekeeping. Based on the daily work required in a house with a garden and in rearing animals, the relationship between animals and humans is evidenced as an ecosystem of relationships in mutual dependence that constantly activate gestures associated with the creation, maintenance and transformation of all things, and they are the place where nature becomes culture.
In “Amores-Perfeitos”, Isabel Carvalho describes her difficulties in acquiring the legal status of informal caregiver and uses humour as a strategy to confer existence to the multiplicity of gestures involved in the acts of caring. Together with some drawings made by her and in which the person she cared for collaborated in, Carvalho’s essay looks at the difficulty in communicating the experience of care and how it requires to be translated and narrowed into a legally recognizable language.
In “Do cuidado, ou as horas malgaxes”, Liliana Coutinho contrasts two perspectives on time (time divided in terms of productivity and time divided in terms of care), while confronting different cultural notions of caring: caring as a practice “naturally” integrated into daily life and caring as an abrupt requirement, the result of the needs imposed by the pandemic.
The regular mailing of correspondence, a procedure that is part of the usual artistic promotion of events, is also part of Ricardo Valentim’s artistic work. His postcard combines care as attention to a friend’s health status and care as a curatorial practice, including references to a work of art and an exhibition that trigger in the artist a comment on the need to “decolonize” artistic institutions, in the form of a humorous interjection.
In “Together/Apart: Mapping Filmmaking and Screening Practices for Mental Health Activism”, the OWTC group presents itself through the description of its dynamics as a group and how the care they promote in the field of mental health, especially in times of confinement, acquires new meanings and new practices through the organization of collective and inclusive cinema viewings.
Finally, the technical drawing by Victor Beiramar Diniz shows a part of his intervention in the flowerbeds of the central reservation of 24 de Julho Avenue, in Lisbon, and is connected with some notes on caring as a cultural domestication of nature in order to reduce its destabilizing force and its jouissance. Carelessness as an operation intrinsic to the general functioning of nature is explored here through the attempt to remove artifice from human interventions on living vegetable matter.


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