Leonorana 8.
Vigilância Surveillance
2023


Projeto editorial: Isabel Carvalho.
Coedição: Joana Pestana, Ana Carvalho e Patrícia Nogueira.
Ensaios de Ece Canli, Filipe Pais, Isabel Carvalho, James Bridle, Pedreira e Sophia Cavalcante, e Valeria Radrigán.
Editorial project: Isabel Carvalho. Co-edition: Joana Pestana, Ana Carvalho and Patrícia Nogueira.
Essays by Ece Canli, Filipe Pais, Isabel Carvalho, James Bridle, Pedreira & Sophia Cavalcante, and Valeria Radrigán.


EDITORIAL
Fratura e Fuga

Em formato de publicação, refletimos em conjunto sobre o fenómeno da vigilância quando esta ultrapassa a sua função enquanto mero mecanismo de controlo e exploramos as suas implicações sociais, políticas e disciplinadoras. Partindo do conceito de “poder disciplinar”, enquanto poder descentralizado das dimensões de espaço e tempo, continuamos a explorar estratégias de “fratura” e de “fuga”, como formas de contrapoder aos mecanismos de vigilância mais ou menos subtis, contrariando o princípio de “normalização” da vigilância. Recorremos aqui ao conceito de “linha de fuga”, tal como teorizado por Deleuze e Guattari, enquanto forma de resistência e escape aos sistemas opressores, nos quais está implícita a vigilância. Os cidadãos estão sujeitos à constante recolha de informação que condiciona e transforma os seus comportamentos, desejos e identidades. Este controlo e opressão infiltram‑se em todos os aspetos da nossa vida, incluindo os ambientes de trabalho, as relações pessoais e as interações digitais. Torna‑se, por isso, premente encontrar estratégias para construir ou imaginar “linhas de fuga” enquanto modos de resistência e escape que rompem com as estruturas e normas estabelecidas, conceber formas de desterritorialização, para criar novas ligações através das fronteiras existentes, num processo de rutura criativa que procura desafiar os modos dominantes de controlo e, simultaneamente, abrir novas possibilidades de existência — sejam elas práticas subversivas, expressões artísticas, estilos de vida, identidades fluidas ou organizações sociais alternativas. [...] Seguindo esta direção, reunimos nesta edição da Leonorana seis ensaios com diferentes estratégias formais. Chloé, o Super‑Objeto, o primeiro dos seis ensaios, de Filipe Pais, está ancorado em dois acontecimentos da atualidade e apresenta um conto aparentemente projetado no futuro sobre uma assistente digital superinteligente – em continuidade com a vigilância constante, atenção e disponibilidade 24/7 que caracteriza o poder de resposta acutilante das assistentes digitais, entidades que se tornaram familiares como a Siri ou a Alexa. Residente num edifício estatal, Chloé está permanentemente atenta e sintonizada com os múltiplos sinais do meio ambiente, mas a sua sobrevivência pode estar em risco devido ao seu caráter crescentemente errático e desobediente. Criada para resolver o problema do aquecimento global, Chloé vê e prevê estados de ansiedade e a iminência de conflitos, os quais gere e acalma através do controlo das persianas ou da intensidade da luz. Esta ficção inspira a possibilidade de os assistentes digitais desafiarem ou “fraturarem” o sistema de vigilância a partir de dentro. Os ensaios seguintes, Muros que Olham de Dentro, de Ece Canli, e Desdobrar um Poliedro, de Valeria Radrigán, detêm‑se sobre a estrutura que tudo vigia, descrevendo os seus mecanismos de controlo e omitindo os riscos da sua utilização. Ece Canli, através da descrição gráfica de cenas violentas, propõe‑nos um olhar crítico e provocador sobre o sistema prisional e as dinâmicas de poder, questionando o voyeurismo envolvido neste sistema. O seu ensaio coloca em causa a lógica da vigilância nos sistemas prisionais e a forma como as pessoas em reclusão são constantemente controladas e monitorizadas. Através de uma escrita vívida e visceral, Canli envolve‑nos na leitura e implica‑nos diretamente, convidando a posicionarmo‑nos criticamente diante de um sistema que perpetua o encarceramento em massa. Valeria Radrigán, por sua vez, alerta‑nos para a presença de infraestruturas camufladas em lugares de visibilidade social. Radrigán transporta‑nos até à exposição Espesores Tisulares do artista chileno Daniel Cruz, para questionar a noção contemporânea de viver “em rede” e a forma como isso cria vulnerabilidades no espaço privado. Esta exposição é descrita como uma subversão da visualidade contemporânea, na qual o artista convida o público a descodificar e a desvendar as complexidades do mundo digital. Assim, no seu ensaio, Radrigán recorre ao simbolismo de elementos naturais, tais como a areia, a praia e o corpo humano, no contexto da comunicação digital, e explora as conexões entre as diferentes obras expostas, destacando temas como natureza e tecnologia, território e ubiquidade, intimidade e exposição, controlo e fuga. Em Notas à Margem: Vigilância, Catos, Aquecimento Global e Tecnologias, de Isabel Carvalho, são evidenciados os efeitos das alterações climáticas nas tecnologias onde se estruturam as nossas vivências do quotidiano. A precipitação dos fenómenos climáticos extremos, nomeadamente o aumento das temperaturas médias, não afeta só os seres humanos, animais e vegetais, mas também os equipamentos móveis e as tecnologias que se ressentem dos efeitos por si causados. Tomando como exemplo a resiliência dos catos, o texto apresenta‑se enquanto teia de pequenos parágrafos autónomos de pensamentos soltos, mas interligados, que revelam estruturas de vigilância sustentadas em tecnologias orgânicas e sintéticas. Em O Fim dos Grandes Dados, James Bridle descreve uma visão redentora do futuro. Num regime pós‑capitalista, a vigilância planetária substituiu a vigilância sustentada nos dados dos indivíduos e uma nova rede de satélites analisa atentamente a superfície terrestre e assegura que os dados pessoais são eliminados. O protagonista desta narrativa acaba por recuperar tecnologias analógicas para o seu projeto pessoal, que desenvolve em regime pós‑laboral, e cujo objetivo é libertar refugiados em situações precárias. O recurso a tecnologias ditas obsoletas enquanto estratégia de disrupção abre outras linhas de fuga na contribuição do coletivo Pedreira. O ensaio visual que criaram consiste numa transcrição da performance intitulada RODA DE SAMPLE a partir de registos, trocas de mensagens e apontamentos produzidos para o evento que decorreu no espaço físico da Pedreira (Porto, dezembro de 2022). A improvisação levada a cabo materializa‑se e atravessa os espaços, seja pelo uso dos erros tecnológicos, como o glitch, seja pela inclusão dos erros de ortografia. Experiência de impulsividade sonora, estes registos traduzem‑se em formas analógicas e digitais, tanto em texto como em imagem. Em forma de insert que habita esta publicação, a artista Ibiye Camp apresenta o projeto Ephemeral Data — um ensaio gráfico que nos remete para os processos de mapeamento e datificação, quer do corpo quer do globo. Camp regressa a Freetown, Serra Leoa, para atualizar uma série de fotogrametrias14 que captam a Rua Campbell, na zona oeste da capital, no período de tempo compreendido entre 2019–2023. Entre a realidade que a tecnologia do 3D scan captou e as falhas dessa captação, avistamos a reconstrução digital de um quiosque móvel 4G. Ephemeral Data aponta para o processo de renderização contínuo que descreve as operações concretas que transformam em dados os edifícios, objetos e corpos. A impressão que nos é devolvida é de uma cidade em estado de permanente mutação, sujeita a sucessivos processos e protocolos de captação que se justapõem, combinam e comprimem numa imagem de baixa resolução ou imprecisa.

EDITORIAL
Fracture and Fugue
In this publication we reflect together upon the phenomenon of surveillance as it becomes more than a mere control mechanism and explore its social, political and disciplining implications. Drawing upon the concept of “disciplinary power”, as decentralized power beyond space and time, we further explore “fracture” and “fugue” [escape] as forms of counterpower over more or less subtle surveillance mechanisms and to contradict the idea of surveillance “normalization”. Moreover, we have resorted to the concept of “line of flight” [ligne de fuite], as theorized by Deleuze and Guattari, as a form of resisting and escaping oppressive systems in which surveillance is implicit. Citizens are subject to constant data collection, which constraints and transforms their behaviour, desires and identities. This control and oppressiveness seeps into every aspect of our lives, including work environments, personal relationships and digital interactions. It is therefore urgent to find strategies to build “lines of flight” as modes of resistance and escape that tear down established structures and norms, and to conceive forms of deterritorialization in order to generate new connections through existing boundaries in a process of creative rupture and liberation that seeks to challenge dominating modes of control while opening up new possibilities of existence, such as subversive practices, artistic expressions, nomadic lifestyles, fluid identities or alternative social organizations.[...] Following this thread, this issue of Leonorana brings together six essays with different formal strategies. Chloé, the Super-Object, the first of the six essays, by Filipe Pais, is anchored in two events of our time and presents a story that is apparently set in the future about a super-intelligent digital assistant — drawing on the constant watchfulness, attention and 24/7 availability that characterize the sharp response capacity of digital assistants such as Siri or Alexa. Resident in a government building, Chloé is permanently attentive and tuned to the multiple signals of the environment, but her survival may be at risk due to her increasingly erratic and disobedient behaviour. Created to solve the problem of global warming, Chloé sees and foresees states of anxiety and impending conflicts, which she manages and pacifies by controlling window shutters or light’s intensity. This fiction inspires the possibility for digital assistants to challenge or “fracture” the surveillance system from within. The following essays, Walls Looking From Within, by Ece Canli, and Unfolding a Polyhedron, by Valeria Radrigán, look into the all-surveillant structure, describing its control mechanisms while omitting the risks of its use. By graphically describing violent scenes, Ece Canli proposes a critical, provoking gaze of the prison system and the power dynamics, questioning the voyeurism that is involved in this system. Her essay challenges the logic of prison system surveillance and the way how inmates are constantly controlled and monitored. With her vivid and visceral writing, Canli involves us in the reading and addresses us directly, calling for a critical position in the face of a system that perpetuates mass incarceration. Following from Canli, Valeria Radrigán draws attention to the existence of camouflaged infrastructures in places of social visibility. Radrigán transports us to the exhibition Espesores Tisulares, by Chilean artist Daniel Cruz, in which he questions the contemporary notion of “network living” and how it generates vulnerability in the private space. This exhibition is described as a subversion of contemporary visuality, as the artist invites viewers to decode and unravel the complexities of the digital world. In her essay, Radrigán resorts to the symbolism of natural elements, such as sand, the beach and the human body, in the context of digital communication and explores the connections between the various works on show, highlighting themes such as nature and technology, territory and ubiquity, intimacy and exposure, control and escape. In Notes in the Margin: Vigilance, Cacti, Global Warming and Technologies by Isabel Carvalho, the effects of climate changes on the technologies in which everyday experiences are structured are highlighted. In addition to extreme and specific weather phenomena, ironically, the increase in average temperatures does not only affect human beings, animals and plants, but also mobile equipment and technologies that suffer from the effects they cause. Taking the resilience of cacti as an example, the text presents itself as a web of small autonomous paragraphs of loose but interconnected thoughts that reveal structures of surveillance supported by organic and synthetic technologies. The last essay returns to the exercise in speculation started with Chloé. In this sci-fi short story, The End of Big Data, James Bridle describes a redeeming vision of the future. In a post-capitalist regime, global surveillance has replaced surveillance based on people’s data and a new satellite network carefully monitors the Earth’s surface ensuring that personal data are eliminated. The narrative’s protagonist eventually recovers analogue technologies for his personal project, which he develops after working hours, with the purpose of setting free refugees in precarious conditions. Resorting to so-called obsolete technologies as a disruptive strategy opens up other lines of flight in the work of the Pedreira collective. Their visual essay consists of a transcription of the performance RODA DE SAMPLE based on recordings, text messaging and notes prepared for the event that took place at the Pedreira space (Porto, December 2022). The work emerges from an improvisation process that moves across spaces, either using tech errors such as glitches or introducing spelling mistakes. These recordings, as an experience of sound spontaneity, are translated in analogue and digital forms, both in text and image. As an insert, intertwined in this publication, the artist Ibiye Camp presents the project Ephemeral Data — a graphic essay that points to the mapping and datafication processes of the body and the globe. Camp returned to Freetown, Sierra Leone, to update a photogrammetric series that captures Campbell Street, in the west of the capital, from 2019 to 2023. Somewhere between the 3D scan captured reality and the shortcomings in capturing it, we glimpse the digital reconstruction of a mobile 4G kiosk. Ephemeral Data points to the continuous rendering process which describes the concrete operations that transform buildings, objects and bodies into data. The resulting impression is that of a city in permanent mutation, subject to successive capturing processes and protocols that juxtapose, combine and compress to form an imprecise, low-resolution image.


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